segunda-feira, 30 de março de 2009

Vovó, não agora

À frialdade do mudo mármore
E ao caos da limpeza minuciosa
- tudo limpo: grãos de areia circundam o imaginário –
Alucino.

De longe, o infernal e desvairado
Som do silêncio
Pode ser ouvido.

Para onde foi a nossa canção?

Pálidos cadáveres passeiam no não-ser
- Ignotos anônimos a se esconder da vida (sangue em cal, ossos em cal, pele em cal) –
Pó.

O sentimento mútuo de indiferença corrobora a fragilidade do laço: dissolve-se.

E, ao final, acabamos tão frios e tão mudos quanto o mármore do chão daquele hospital.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Flor da Ilha

Aurora dos sentimentos sinestésicos
Crepúsculo da matéria barata e prescindível.
Ao doce som de tua voz,
À maciez do toque de tuas pétalas,
Flor da Terra, deliro.

- Flor de sal e iodo,
sol e ventos fortes,
Flor de sangue, carne
e ossos –

Cresce tímida
Em meu frágil jardim
Vermelho e pulsante.

Carreias algo contigo. Bem sei.
É felicidade?
É dor?
O tempo dirá.
Mas o tempo de um apaixonado
Nunca é contado por apenas um relógio.

sexta-feira, 13 de março de 2009

De cabo-a-rabo

O palito que eu acendo
E que vejo queimar
Não queima de cabo-a-rabo
Pois, há certa parte sua
Que protejo com meus dedos.

Quando já sinto o calor
Arder-me por debaixo das unhas
Solto aliviado o palito
Que cai no chão
E apaga-se
Antes de inteiro virar cinzas.

Se um homem morre e
É enterrado,
Seu corpo certamente
Será comido pelos vermes:
Há de virar húmus por fim
O homem que se serviu do fruto deste.

Contudo, apesar de todas as leis
Da ininteligível natureza
Que nós inutilmente tentamos
Entender,
Sobram os ossos, os cabelos
E há também algo de mais belo
Por trás de tudo isso...

Sobra sempre a lembrança
No porta-retratos em cima do criado-mudo,
Rodeado por quinquilharias
Que remontam a existência
Dum alguém que não existe mais.

E assim, com um palito
Que não queima de cabo-a-rabo
Acendo um cigarro
Que também não queimará de cabo-a-rabo
E tragando a minha morte
Hei de me tornar lembrança
Em algum porta-retratos
Em cima de algum criado-mudo
Rodeado por quinquilharias
Remontando a minha existência
Que, já hoje,
Não existe mais.

terça-feira, 10 de março de 2009

Conversa entre dois apaixonados

- Eu vou como vão as tempestades
Levo o que há em meu caminho
Destruo o que não se deve destruir
E, ao fim, findo.

Giro em torno de mim mesmo
Atraindo o bom e o ruim
O bom parece ir-se depois
E o ruim se tornar parte de mim.

Amigo, como vai a vida?

- Amigo, sou de ti um espelho
Teu reflexo, teu rosto e tua dor
Minha agonia agora responde por mim
E eu só tentando juntar o que ficou.

Estou como querem os abutres:
Homem por fora, carcaça por dentro
Minh'alquimia agora é desastre
Transformando todo remédio em veneno.

- Eu te entendo e irei te confortar
Eis aqui um vencido, um perdedor
Que pergunta a ti se aguentas
Uma vida sem sentir dor.

Saiba que sem a dor, um homem
Mutila a si mesmo sem saber
Fura os dois olhos com os dedos
E nem percebe que parou de ver!

- Talvez cego eu esteja e ainda não vi
Pois, eis aqui o meu torpor
Nem mesmo lembro se já vivi
Uma vida em que não houvesse dor.


Hoje já não sei se eu nasci
Ou se já vim morto de nascimento
Fadado a viver me perguntando
O que me causa tanto tormento.

- E eu a viver amando a tudo
E por tudo também sofrendo
Pois hoje sou um homem sem medo
Que a tudo quer e a tudo vive querendo.

E não há lógica mais cruel
Que essa presente no amor
Como um sentimento tão lindo
Pode sustentar-se na dor?

- Talvez dialoguem asneiras
Ou teçam artimanhas contra nós
Mas ultimamente um começa no outro
E o que sempre resta é o após.

Só sei que das mulheres eles falam
E falam sobre mulheres num andor
E nós, discípulos e escravos da alma
Temos um coração curioso e sonhador.

- Irmão e irmã, filhos das mulheres!
E que mães desnaturadas elas são
Parem amor e dor, mas, na hora de criar
Entregam-nos em nossas mãos.

E deixam sua cria à nossa sorte
Embora sejamos irresponsáveis
Somos mães e pais de filhos amados
E odiados, contudo, por nossos erros irreparáveis.

- É verdade e desdita tudo que dizes
Sobre a tutela que temos nas mãos
Não somos donos nem de nós mesmos
Quem dirá de um outro coração.

Somos atraídos por nossos desejos
E fazemos de nosso lar uma prisão
Não por imprudência ou negligência
Mas por falarmos com a voz da paixão.

- O desejo é uma lâmina afiada
E o apaixonado sofre duplamente
Primeiro o desejo corta o coração
Depois ele é cravado na mente.

Sábios os que usam armadura
E que se privam do próprio olhar
Estes formam o grupo dos homens
Que nunca irão se apaixonar.

- Os sábios, amigo, são todos
Teóricos por devoção
Que da prática nada conhecem
E do amor só têm a audição.

E são todos velhos, bem sei
Não por muito terem vivido,
Mas, por tanto abortarem o amar,
O coração tem se apodrecido.

- Entendo... Discordo, entretanto.
Antes fossem todos amados
Ou amantes, pois, os sábios hoje,
Foram antes ‘comidos, cuspidos e largados’.

E mesmo com tudo isso
Digo que dar sentido à vida
É amar, não ser amado.
Amar até a hora da partida!

- Amar para sempre é sofrer
Se o outro não conseguir te amar
Por isso é mais sábio viver
Amando enquanto o “para sempre” durar.

Eternas são só as lembranças
Já os amores, estes vêm e se vão
Cada ida é uma vez que morremos
E cada chegada é uma ressurreição.


- Amar eternamente é a solução
Para os problemas da humanidade
Não se precisa amar um alguém
Mas os humanos em sua totalidade.

Esquece que um dia
O teu amor te abandonou
Pois o amor só abandona
Quem um dia já amou.

- O que dizes é uma boa questão
E que há muito me inquieta
O amor é fruto de sua lembrança
Ou da dor que ele arquiteta?

Razão e paixão não são aliadas
Nunca foram, nunca serão
Pois como podemos viver nas nuvens
E ainda assim triscarmos o chão?

- Não vivemos nas nuvens
Mas sim no ardor do inferno
Pois, que é o amor
Senão calor no inverno?


Derretemos o gelo
E fez-se então um mar
E tal mar é composto
Pelo verbo sofrer-amar.

- E é de inventar verbos
Que se cria a gramática do amor
Imperativos da primeira pessoa
Subjuntivos do que ainda for.

Tempo presente e talvez um futuro
Quase sempre imperfeito
Pois o homem que ama é mais que um vidente
É um vidente que só acha defeito

- É isso o que me deixa triste
Pois não acho nenhum defeito
E a tudo nesse mundo
Deixo o adjetivo ‘perfeito’.

E a gramática de nada serve
Se da boca não sai nada
É como tentar escrever
Quando se tem a mão cortada.

- Ter bons olhos a tudo que vê
Não é absurdo, muito menos defeito
Mas apenas um retoque que fazes
Para deixar o teu mundo direito.

O remédio da dor é a ignorância
É não saber o que te devora
Desconhecer o infortúnio da alma
Não saber que o amor foi embora.

- É absurdo e é defeito
Por isso que ando a me cegar
Já não aguento mais sofrer
Por mais que eu ame amar!

E se ontem evitei o amor
Foi pra hoje me provir dele
Pois se ontem ele cuspia dor
Hoje é prazer que ele expele.*

Amigo,
O amor é o amor e é beleza
Então permite a ti sentir
Deixa todo rancor e mágoa
Simplesmente ir.

Ama hoje e amanhã, sê amante
E por nada nesse mundo cansa de ser
Ama pelo bem teu e dos outros, do mundo
Ama de amanhecer a amanhecer.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Treino de estilo - sobre um acontecimento na escola

Cantaram o hino na escola.
Não cantei.
Eu,
Mais macaco que homem,
Subi no mastro
Agarrei a bandeira
E rasguei o verde
O amarelo
E o azul.
Cores tão importantes
Que eu e a maioria dos brasileiros
Divide a mesma dúvida:
“Por quê?”
Rasguei.
Joguei os retalhos aos alunos
Que já haviam se dispersado
E esperneavam, gritavam e riam.
Riam alegremente à baderna natural
Levantavam os punhos cerrados ao alto e gritavam:
“Vamo lá, Espeto, Vamo lá!”
Eu,
Encorajado pelo povo que não tem o pão e clama pelo circo
E não menos encorajado pela minha insanidade
E lucidez – talvez. Quem sabe?
Segurei em meu último fio permanente
E amarrando um pedaço da bandeira rasgada
Em minha cabeça
- Um pedaço verde
Amarelo
E azul –
Gritei:
“Desordem e progresso!”

Mais tarde -

Questionado sobre minha atitude e ameaçado de expulsão, justifiquei-me da seguinte maneira:
“Gomes, meu caro, não sou anarquista e muito menos sou antipatriota. Contudo, Gomes, compadre, careço de crença nesta ultrapassada referência ao positivismo presente na bandeira brasileira. E digo mais, aliás, pergunto: onde está a ordem e o progresso dos não-sei-tantos anos de bandeira? Quero saber... Pois se me mostrarem, eu mesmo costuro essa porra novamente!”
Com a adição de certo sotaque nordestino, tal foi meu discurso.
Gomes, estupefato, porém, sábio, manteve-se calado. Eis que veio... Quem? Dona Socorro!
Dona Socorro chegou e falou:
“Meu filho, você – pausa, engole seco, pensa – acredita em Deus?”
Eu não admiti tal pergunta. Certamente, em ocasiões específicas, está não é além de uma pergunta comum, apesar da inconveniência e intimidade da questão. Mas não era aquela a hora. Bati as mãos na mesa, e com um pequeno aumento no sotaque nordestino e no volume da voz, respondi:
“Acredito, mas não no teu deus! Se teu deus te proíbe de defender tuas idéias e teus ideais, por mais equivocados que sejam, esse é um doido fascista!, não meu Deus! Acrescento: e se eu disser que foi Deus o mandante do atentado ao teu pudor e ao da escola, mas não ao meu e ao do restante dos alunos? A resposta eu já imagino qual será... Uma negação! Claro!, sempre negando, eim?”
Não acho que tenha agredido os sentimentos de alguém, mas, sabe como é... Esse povo da velha guarda não suporta essa juventude moderninha e, embora eu não concorde, a afirmação convicta de Dona Socorro foi:

“Gomes, este garoto está com o diabo no Couro!”

domingo, 1 de março de 2009

Maranhense é gente

Maranhense
Ludovicense
Da casca
Do ovo
Da galinha
Que come
Minhoca
Que é comida
Pelo galo
Com crista
Sem crista
Que é comida
Por nós
Fascistas
Com cristo
Sem cristo
Matando pra viver
Pra comer
Por prazer.

Galinha que vem do fundo
Do quintal
De lama
De cimento
Ou de terra batida
Do forno
Ou do fogão
Frita ou cozida
Do beco
Da rua
Da esquina
Da avenida
Ou do galeto do Pingão.

Com sangue
Sem sangue
Farofa
Coca-cola
É o almoço
De hoje
De amanhã
De muita gente
Que quer comer
Mas não pode
Porque a galinha
Não é de graça
A galinha
Não faz graça
A galinha
Não custa caro
Pra mim
Pra ti
Pra fulano
Pra cicrano
Mas pra alguém
Que não tem
Um centavo
Uma moeda
Que não tem
Dois calções
Duas camisas
Um chuveiro
E que fede
O fedor
Do suor
Dos esgotos
Da miséria
Da pobreza
Das ruas
De São Luís do Maranhão.

Minha São Luís do Maranhão
De Sarney
Mais rico
Que o presidente
Mais rico
Que muita gente
Que compra
Uma galinha
Duas galinhas
Duas mil galinhas
Sem esforço
Sem coçar
O bolso
o sovaco
o cu.

Minha São Luís do Maranhão
Do mar
Dos portugueses
Franceses
Holandeses
Dos índios
Caçados
Torturados
Explorados
escravizados
Dos negros
Caçados
Torturados
Explorados
Escravizados
Pelo branco
Que é gente
Como toda a gente
Que come
Como a gente
Farinha
Que bebe
Cachaça
Na Praia-grande
Na feira
Cachaça
Do bar do seu Batista.

Minha São Luís do Maranhão
Do homem macho
Do homem qualira
Do homem homem.

De toda a gente
Que come
Que fode
Que dorme
Que caga
Que sente.

Da gente gorda
Magra
Pela riqueza
Pobreza
Pela gula
Culpa
Culpa
Das vermes
Da sujeira
Da doença
Do povo
Das praças
Das calçadas
Da ruas
Das avenidas
Da câmara
Dos tribunais
Dos casarões
Culpados
Pelos culpados
Ladrões
Inocentes
Vítimas
Vitimando
Homens
Mulheres
Pessoas
Vitimados
Por gente
Que acha
Ser mais
Que gente
Que a própria gente
Nossa gente
Da nossa terra
Terra.




São Luís
Do maranhão
Do Brasil
Do céu
Das coberturas
Dos edifícios
No calhau
Na litorânea
Do inferno
Das bocas-de-fumo
Dos becos
De faca
Navalha
Revolver
Porrada
Em gente
Que trabalha
E que é menos que a gente
Que acha
Ser mais que a gente.

São Luís surda
Do surdo
Do mudo
Do surdo-mudo
Na Deodoro
Na rua grande
No caiçara.

Minha São Luís do Maranhão
Que não é minha
É da gente
Que vive
Que morre
Que mata
Que a mata
Que se mata
Que fala
Que ouve
Que cala
E me ofende.


Minha São Luís do Maranhão
Da gente não
Não Da gente
Da gente que não parece ser gente.